Até um dia, meu amigo
Elen de Moraes
À pressa, pegou o comboio que o levaria em sua longa e derradeira viagem. Seguiu sem se despedir, sem tempo para um último abraço, sem dizer adeus. Estava lá, no horário marcado!
Tomou assento à janela e viu as flores do jardim da sua vida terrena despetalando-se, lentamente, enquanto perdiam a expressividade das suas cores. As pétalas caídas, levadas pelo vento, plainavam alegres até se perderem no horizonte e, em busca do infinito, cantavam:
“Rainha cheia de brilhos,
Mãe deste teu filho amigo,
Que me livra dos sarilhos,
Da desgraça e do perigo,
Depois de eu criar meus filhos
Estou pronto a ir contigo!”
“Rainha cheia de brilhos,
Mãe deste teu filho amigo,
Que me livra dos sarilhos,
Da desgraça e do perigo,
Depois de eu criar meus filhos
Estou pronto a ir contigo!”
Na vida que se congelava, sentiu sua alma mergulhar no hiato que se fez entre sua matéria e seu espírito e, imortal, levantar vôo rumo à eternidade para tomar posse de um novo tempo. Viu-a banhar-se, pelo caminho, nas “Fontes de Lágrimas” e juntar, num belo rosário, as contas das suas doces recordações:
“O tempo passa e a saudade fica. Fontes de lágrimas renascem...
Quem me faria acreditar que a meninice e a juventude me fugissem! Quem me faria acreditar que a velhice chegaria! Ninguém o faria. Mas hoje me soam as benditas palavras dos antigos: “Este mundo não é nosso e a vida são dois dias.” E se recordar é viver...
Recordo a camisa ponteada, as calças remendadas e os pés nus pelo chão, calcando as pedrinhas da rua;
recordo o saboroso pão trabalhado à miséria e eu faminto;
recordo as pobres palhas onde adormecia e sonhava, a velha manta que me cobria nas geladas noites de inverno e o quarto defumado pela candeia;
recordo a boa professora que me ensinou a escrever a palavra saudade e o saudoso vigário que, com suas santas mãos, me baptizou com a água, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. E foi ele quem pela primeira vez, desvendou minha boca com o corpo de Jesus;
recordo o Império do Divino Espírito Santo, a despensa onde se guardavam as esmolas e as Sociedades onde passei parte da minha juventude;
Ai que saudades de ti, minha aldeia, a quem deitaram o lindo nome de Altares, berço de homens honrados, assim como este teu filho imigrado que vê brotar entre suspiros de saudade e o amor que sente por ti, suas eternas fontes de lágrimas!
Lá distante, Deus te abençoe, ALTARES.”
recordo o saboroso pão trabalhado à miséria e eu faminto;
recordo as pobres palhas onde adormecia e sonhava, a velha manta que me cobria nas geladas noites de inverno e o quarto defumado pela candeia;
recordo a boa professora que me ensinou a escrever a palavra saudade e o saudoso vigário que, com suas santas mãos, me baptizou com a água, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. E foi ele quem pela primeira vez, desvendou minha boca com o corpo de Jesus;
recordo o Império do Divino Espírito Santo, a despensa onde se guardavam as esmolas e as Sociedades onde passei parte da minha juventude;
Ai que saudades de ti, minha aldeia, a quem deitaram o lindo nome de Altares, berço de homens honrados, assim como este teu filho imigrado que vê brotar entre suspiros de saudade e o amor que sente por ti, suas eternas fontes de lágrimas!
Lá distante, Deus te abençoe, ALTARES.”
Talvez, seu ultimo olhar tenha sido para sua ilha Terceira, antes de cruzar os umbrais que o levariam aos braços de Deus, seu Pai muito amado, e por ele, tantas vezes, em seus versos, entronizado.
Morreu o Poeta? Não! O Poeta não morre: imortaliza-se através da sua obra.
E Daniel Arruda, além de perpetuar-se na sua descendência, no amor da sua companheira e no carinho dos seus diletos amigos, terá seu nome lembrado pelos seus poemas, pelos seus versos instigantes e cheios de bom humor, como Cantador ao desafio e pelos seus dramas de carnaval, todos eternizados no livro “Em busca de um sonho”.
Soube da morte do Daniel por Angelina Bertão, sua amiga, e enquanto ela me dava a noticia, entristecida lembrei as muitas horas dos serões que ele, eu e José Raposo fizemos durante a correção dos seus poemas, momentos de alegrias e choros emocionados, que estreitaram nossos laços de amizade. Resolvi telefonar para comentar com José sobre o acontecimento e como ele ainda não estava a par, resolvi deixar com isilda a tarefa de dar-lhe a triste notícia.
O DANIEL MORREU!
José M. Raposo
Disse-me a minha mulher e em seguida perguntei-lhe como ficou sabendo. Respondeu-me que a Elen chamou do Brasil a dar a notícia.
Entristeci-me, imensamente, e pensei: pelo menos acabou de penar e conseguiu realizar o seu último grande sonho.
Há anos, como sabem, o Daniel me disse que o seu sonho era publicar um livro antes de morrer. Não foi fácil e se não fosse a ajuda de tanta boa gente, o sonho do Daniel nunca passaria de um sonho. Houve quem abriu a carteira para o ajudar; houve quem não pôde ajudar monetariamente, mas ajudou de outra forma; houve quem imediatamente recusou a ajuda no que quer que fosse e houve, ainda, quem prometeu muito, que se deslocaria de Portugal para vir ao lançamento do livro e que traria um cheque de mil euros e essa pessoa não veio e esse cheque nunca chegou. Não obstante o seu nome figura na lista dos contribuintes. Quando eu contei ao Daniel que esse senhor comendador havia prometido tal quantia, ele disse: - Oh, José, quando a esmola é muito grande o santo desconfia!
E houve, também, alguém que quis lixar o Daniel, depois de se ter feito as festas do lançamento do livro e que conseguiu fazer negros muitos meses da sua vida.
O Daniel não era perfeito, ninguém é, porém foi uma pessoa sincera, que ajudou a comunidade no que pôde e a comunidade soube retribuir quando ele precisou de ajuda.
Numa fase da sua vida, o Daniel serviu de pai e de mãe para os seus filhos. Lembro-me de uma cantoria que fomos fazer em Buach, para angariar fundos para o Azores Relief Fund, e os filhos do Daniel foram connosco. Estavam bem vestidos e portaram-se muito bem durante a viagem de ida, durante a estadia em Buach e durante a viagem de regresso. Ainda hoje a filha mais nova do Daniel, a Falícia, fala nessa viagem.
Durante o tempo que eu e a Elen ajudamos ao Daniel na correcção do seu livro, nos rimos muito, zangamo-nos e, muitas vezes, choramos os três juntos. Lembro-me de um poema que ele escreveu e que acabava nestes termos:
“.... estás entregue a satanás.”
“.... estás entregue a satanás.”
Eu disse: - Ó Daniel por pior que essa mulher tenha sido, não digas uma coisa dessas. Quando se diz uma cantiga em cima de um palco, a maior parte das vezes as pessoas não se lembram do que foi dito, mas o que se escreve fica para sempre.
O Daniel era pessoa de pouca escola, no entanto, era um óptimo repentista e há, para aí, outros tantos que não ficam atrás. Há tempos, na Tribuna Portuguesa, foi lançado o alvitre para se fazer, aqui na Califórnia, como que um congresso de Cantadores ao Desafio. Eu disse que estaria pronto a ajudar. Talvez, não devesse ter-me oferecido! Deveria ter esperado que pedissem a minha ajuda, pois a ideia não vingou... Que eu saiba, o casal Beirão, de Napa, foram as únicas pessoas, até hoje, que fizeram uma festa para honrar os Cantadores ao Desafio.
Temos uma Organização, a Portuguese Heritage Publication of California, que tem feito lançamentos e publicado alguns Poetas e Escritores de grande talento, na nossa comunidade. A maioria dos Cantadores ao Desafio - como o Daniel - são pessoas que não têm a cultura e o saber desses outros intelectuais, mas, são gentes que também enriquecem, preservam e difundem a nossa cultura, são gentes que têm talento e valor. Não foram à escola para aprender a escrever poemas, porém a arte nasceu com eles e, se bem que a Portuguese Heritage Publication of California e os seus responsáveis tenham feito um excelente trabalho, seria uma óptima ideia se tal organização chamasse a si a responsabilidade de publicar um livro sobre os cantadores ao desafio, aqui da Califórnia. Isso só poderia vir a contribuir para o prestígio de tal organização e deixar para as gerações futuras algo do qual nos poderíamos todos orgulhar. O Daniel realizou o seu sonho: deixou escrito suas danças, suas cantigas e seus poemas e assim viverá, eternamente, na memória dos Portugueses da California, da sua Terceira, dos seus amigos e dos amantes das cantorias ao desafio.
Não pude ir ao funeral, mas fui ao rosário e fiquei deveras comovido quando, talvez, pela primeira vez na Igreja Nacional Portuguesa das Cinco Chagas se ouviu as vozes dos cantadores ao desafio, acompanhadas pela guitarra e violão a prestar homenagem a alguém. Mais comovido ainda fiquei quando a voz do Luíz quebrou o silêncio sepulcral, ao cantar um lindo fado enquanto o caixão com corpo do Daniel saía da Igreja.
À família enlutada as nossas condolências. Paz à sua alma.